O presidente do Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo (Crefito-SP), Prof. Dr. Gil Lúcio Almeida, responde às opiniões ofensivas sobre as profissões da saúde emitidas pelo presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Dr. Roberto d’Ávila, em entrevista ao Jornal do Brasil On line. Leia também o artigo de Prof. Gil publicado na versão impressa do Jornal do Brasil (clique aqui), de 11 de janeiro, em resposta ao presidente do CFM.
O presidente do CFM, Roberto
d'Ávila, alega que lideranças de algumas profissões da área da saúde têm
interesse em que não haja regulamentação da medicina. Como é
isso?
Gil
Lúcio: Em primeiro lugar os Conselhos Federal e Regionais
de Medicina foram criados em 1951 por força de uma lei federal. Desde então, O
CFM já editou quase 2 mil resoluções e os Regionais já usaram milhares de vezes
o poder de polícia para punir o exercício ilegal ou a má prática da medicina.
Assim, a medicina no Brasil está de direito e de fato regulamentada há aproximadamente 60 anos. O
Projeto de lei em debate objetiva regrar novos atos privativos dos médicos. Os
conselhos de saúde sempre apoiaram o direito dos médicos de ter seus atos
privativos definidos em lei. Escrevi dois artigos com o presidente do Conselho
Regional de Medicina do Estado de São Paulo defendendo o direito de todos os
profissionais de terem seus atos estabelecidos em lei.
Mas para
o CFM o diagnóstico e o tratamento das doenças são atos privativos dos
médicos.
Gil Lúcio: Existem no
Brasil 14 profissões regulamentas da saúde. Para adquirir as habilidades e
competências (estabelecidas pelo Ministério da Educação) dessas profissões para
fazer os diagnósticos e os tratamentos das doenças, uma pessoa teria que estudar
60 anos. Como admitir que um médico estabeleça um tratamento em uma área que ele
não conhece? Como admitir que um profissional atenda um paciente se ele não
souber sequer identificar os principais sinais e sintomas da doença? No lugar de
transformar os profissionais da saúde em técnicos, precisamos torná-los mais
profissionais a cada dia. Para preservar os interesses dos pacientes é
necessária uma legislação que puna rigorosamente a má prática dos profissionais
em suas respectivas áreas de atuação. Delegar aos médicos o exercício de atos
para os quais eles não possuem treinamento é instalar o caos e a
irresponsabilidade nos serviços de saúde pública do Brasil. Foi exatamente
pensando nos interesses da vida que os conselhos de saúde do Estado de São
Paulo, incluindo o de medicina, celebraram um termo de compromisso em que cada
profissão iria respeitar o direito da outra de realizar o diagnóstico,
tratamento e prognóstico, em suas respectivas áreas de atuação. O Roberto
d'Ávila quer implantar no Brasil o que deu errado em Portugal. Como a lei
daquele país deu aos médicos com exclusividade as prerrogativas de diagnosticar
e prescrever tratamento das doenças, as profissões da saúde não se desenvolveram
e hoje Portugal importa profissionais do Brasil.
No Brasil,
quando uma pessoa fica doente e vai ao pronto-socorro é o médico quem faz o
diagnóstico e o tratamento da doença?
Gil Lúcio: Na presença de qualquer dor ou
mal-estar súbito a pessoa deve procurar sempre o pronto-socorro. Lá ela
encontrará uma enfermeira que irá fazer uma primeira triagem para verificar a
gravidade do caso e encaminhá-la para um médico. Nesses casos os pacientes devem
seguir à risca as determinações do médico. A maioria das doenças (i.e., câncer,
diabetes, disfunções cardiovasculares, obesidade) que afligem a humanidade
possui várias causas. Cada profissional da saúde é treinado para analisar parte
dessas causas. Não é por outra razão que nos prontos-socorros, enfermarias e
unidades de terapia intensiva dos mais modernos hospitais do Brasil e do mundo
existe sempre uma equipe multidisciplinar de saúde. No entanto, quatro em cada
cinco pacientes são portadores de doenças crônicas. Isto quer dizer que já
passaram por vários especialistas, clínicas e hospitais e continuam sofrendo.
Para esse grupo que consome a maioria dos recursos em saúde, a solução está na
disponibilização dos serviços dos profissionais da saúde e não em pilhas de
exames e caixas de remédios.
Caso o projeto de lei não seja
aprovado, os profissionais da saúde poderão criar dificuldade para que os
pacientes tenham livre acesso aos médicos?
Gil Lúcio: Hoje o paciente pode escolher
consultar qualquer profissional da saúde sem que tenha que pedir permissão ao
presidente do CFM. Isso ocorre porque perante a Constituição Federal somos
livres para ir e vir. Portanto, o presidente do CFM jamais conseguirá afrontar
as garantias individuais sacramentadas na Constituição Federal. Neste contexto,
a afirmação do presidente do CFM de que os fisioterapeutas não querem que os
pacientes vão aos médicos é no mínimo uma irresponsabilidade. Não existe no
Brasil nenhum relato de que alguém tenha impedido uma pessoa de consultar
livremente um médico.
O projeto de lei afeta o
desenvolvimento científico da saúde?
Gil
Lúcio: Não acredito. Os cientistas possuem autonomia para
pesquisar qualquer área desde que tenham a autorização de um comitê de ética.
Porém, o avanço científico apenas comprova a reprovação da sociedade a
investidas corporativas. Veja, devemos os maiores avanços na área de diagnóstico
aos biólogos moleculares. Não é por outra razão que os três Prêmios Nobel em
medicina de 2009 são biólogos. Eles estão demonstrando que doenças classificadas
como pertencentes a diferentes grupos possuem na verdade um mesmo defeito
molecular. Em um futuro breve teremos que reaprender, com os biólogos, a fazer
diagnóstico se quisermos identificar realmente o fator causal de uma doença.
No que o projeto de lei afeta os serviços de saúde e em
especial o SUS?
Gil Lúcio: Na
teoria o SUS é um sistema muito bom. Porém, na prática, o Governo Federal
realiza um bilhão de consultas médicas, as quais geram meio bilhão de exames e
toneladas de medicamentos. O médico sem uma carreira de estado e com falta de
controle gerencial gasta em média cinco minutos em uma consulta. Nesse tempo é
impossível fazer qualquer tipo de diagnóstico e assim as consultas são
substituídas por guias de solicitação de exames. Desta forma, o SUS se
transformou em uma grande indústria da doença. No lugar de cuidarmos das
pessoas, estamos gastando uma fortuna com exames e medicamentos desnecessários.
Hoje temos 50 milhões de portadores de doenças crônicas e ainda vivemos uma
década a menos do que poderíamos. Essa triste realidade ainda ocorre apesar
dessa grande cobertura e de ainda sermos jovens. Existem hoje no Brasil 30 mil
equipes de saúde da família, compostas por médicos, enfermeiros e agentes
comunitários. Precisamos de 90 mil equipes da família para atender os 190
milhões de brasileiros. Basta o Estado ampliar essa oferta e incluir nessas
equipes os profissionais da saúde para fazermos uma revolução no atendimento.
Além de resolver um grave problema de desemprego no setor, essa medida custará
muito menos aos cofres públicos e ajudará a alcançarmos uma vida prolongada com
saúde e produtividade.
Mas o projeto de lei impede que os
profissionais da saúde prestem os seus serviços no SUS?
Gil Lúcio: O projeto de lei na
forma como está apenas irá disseminar o ódio onde é necessário prevalecer o
entendimento e a paz. Para vacinar uma criança, por exemplo, o enfermeiro terá
que exigir da família uma consulta médica autorizando-o a aplicar a injeção. Os
terapeutas ocupacionais terão que deixar de fazer próteses e órteses. Nas
unidades de terapia intensiva, os fisioterapeutas terão que pedir autorização de
um médico para manter o paciente respirando. Um biólogo ou biomédico, mesmo
sendo um Nobel em medicina, não poderá fazer um laudo de um exame. Os milhões de
brasileiros que vivem na periferia, nas imensas regiões rurais e no interior,
estão sem médicos. Como proibir uma enfermeira de fazer um parto nessas
localidades pela simples razão de que a maioria dos médicos prefere trabalhar
nos grandes centros urbanos? Os profissionais da saúde, mesmo ganhando muito
menos que os médicos, querem trabalhar nesses locais. O Estado não pode impedir
a população de ter a assistência daqueles que querem socorrer a vida em sua área
de especialidades. O projeto de lei engessa o SUS ao obrigá-lo a ofertar
primeiro a consulta médica para só depois liberar o paciente para o tratamento
com os demais profissionais da saúde.
Existe disputa entre
os outros profissionais da saúde por atos privativos?
Gil Lúcio: A Constituição Federal estabelece
que é livre o exercício de qualquer profissão, ao menos que uma lei
explicitamente impeça o cidadão de praticar um determinado ato. Precisamos
lembrar também que os conselhos, enquanto órgãos públicos, só podem impedir uma
pessoa de exercer um ato se a sua lei taxativamente proibir. Ocorre que as leis
que criaram as profissões da saúde no Brasil definem de forma bastante genérica
os atos privativos dos profissionais. Assim, em tese, quase tudo pode e tudo não
pode. Esse regramento liberal forçou os conselhos da saúde a criar limites
imaginários de atuação. Mesmo sem uma legislação, desconheço no Estado de São
Paulo um único fisioterapeuta ou terapeuta ocupacional prescrevendo medicamentos
ou fazendo cirurgias, atos que defendemos ser dos médicos. Desta forma, tivemos
que aprender a conviver de forma civilizada e pacífica. Quando o CFM tentou
estabelecer que apenas os médicos podiam realizar a acupuntura, a Justiça deu
esse direito a todos os profissionais da saúde. Isso foi bom na medida em cada
profissional da saúde passou a usar a acupuntura em suas respectivas áreas de
atuação.
O presidente do CFM diz que a lei da fisioterapia não
permite esses profissionais realizarem diagnóstico e que, portanto, eles
deveriam apenas executar o tratamento fisioterapêutico estabelecido pelos
médicos. O que dizer disso?
Gil
Lúcio: Há anos no Brasil os médicos realizam diagnóstico
médico, prescrevem medicamentos e executam cirurgias. Fazem isso sem a
necessidade de uma lei federal e a Polícia prende os leigos que ousam exercer
esses atos. Neste contexto é no mínimo risível a declaração do Roberto d'Ávila
afirmando que os fisioterapeutas não podem fazer diagnóstico fisioterapêutico
porque a lei não explicita isso. O Ministério da Educação estabeleceu as
diretrizes dos cursos de graduação e sabiamente determinou que cada profissão da
saúde regulamentada faz o diagnóstico, tratamento e prognóstico em sua área de
atuação. Ora, como pode o Roberto d'Ávila querer que os médicos façam
diagnóstico e prescrição na área de fisioterapia se eles não são treinados para
tal? O presidente do CFM está travando uma luta inglória, que agride a
sensibilidade e bom senso dos médicos, além de afrontar as garantias individuais
do cidadão estabelecidas na Constituição Federal. A visão beligerante do
presidente do CFM mesmo antes da aprovação do projeto de lei apenas demonstra a
batalha jurídica em que ele transformaria as relações entre os conselhos de
saúde caso esse projeto de lei fosse aprovado. O triste é que os prejudicados
seriam os pacientes enquanto persistisse a litigância.
Quem são
os profissionais da saúde afetados pelo projeto de
lei?
Gil Lúcio:
O projeto de lei estabelece claramente que seus regramentos não se aplicam aos
cirurgiões dentistas. Todas as demais profissões da saúde são afetadas pelos
regramentos que cerceiam a autonomia do exercício das profissões. Profissões não
regulamentadas (por exemplo, optometria e a estética) seriam banidas do mercado,
uma vez que os atos praticados por esses profissionais passariam a ser
privativos dos médicos.
O presidente do CFM afirmou que existem
alguns gestores de saúde que estão substituindo os médicos por outros
profissionais da saúde, tentando assim enganar a população. Ele também afirma
que fisioterapeutas e enfermeiros estão prescrevendo medicamentos. O que acha
disso?
Gil Lúcio: O presidente
do CFM precisa entender a importância do cargo que exerce. O CFM é uma das
principais instituições desse país e merece respeito. Os homens públicos de
coragem não lançam denúncias ao vento, mas exercem na plenitude a cidadania. Se
existe algum gestor que não oferece os serviços médicos a quem necessita, basta
o presidente do CFM denunciar o caso ao Ministério Público, o qual agirá
prontamente. Lembremos que Saúde é direito de todos e dever do Estado. Agora,
culpar um prefeito pelo fato de nenhum médico se interessar em trabalhar em uma
região carente é no mínimo injusto. Não temos conhecimento de que algum
fisioterapeuta tenha prescrito medicamento. Basta uma denúncia ao Crefito-SP e
ele perderá o direito ao exercício profissional. O presidente do CFM deveria ter
a coragem de fazer uma denúncia pública ou alternativamente respeitar os
profissionais da saúde que trabalham com afinco para socorrer a vida.
Quem pode usar o título de doutor? E os profissionais devem
usar crachá?
Gil
Lúcio: No Brasil apenas as pessoas que cursam um doutorado
reconhecido pelas autoridades governamentais (Capes) possuem título de doutor.
Culturalmente, todos os profissionais graduados, incluindo os médicos,
intitulam-se “Doutores”, apesar de a maioria absoluta não ter mestrado e muito
menos doutorado. Bastaria um acordo entre todos os conselhos para que os
profissionais deixassem de usar o título de doutor, a menos que tenham um
diploma de doutorado. O que não pode é apenas os graduados em medicina usarem o
título de doutor. Os conselhos também poderiam, em comum acordo, obrigar todos
os profissionais a usar crachá e um jaleco com o nome de sua profissão. Todos os
profissionais da saúde que conheço têm orgulho de suas profissões e amariam
adotar essa medida.
O que a população pode fazer para saber se o
fisioterapeuta ou terapeuta ocupacional está autorizado para exercer a
profissão?
Gil
Lúcio: O Crefito-SP disponibiliza em seu site www.crefitosp.gov.br todas as
informações sobre os seus profissionais. Basta acessar e digitar o nome completo
ou número do Crefito ou RG do profissional. A população precisa entender que é
seu direito solicitar todas as informações sobre o profissional que irá
atendê-la. O presidente do CFM poderia nos ajudar a conscientizar a população de
seus direitos no lugar de disseminar a ideia de que “pobre” não sabe diferenciar
um médico de um enfermeiro. Hoje 62 milhões de brasileiros possuem acesso à
internet. Quando era engraxate, ainda criança, ficava triste quando ouvia alguém
dizer que pobre não sabe se defender. Acho que a inteligência do outro merece
mais respeito.
O SUS tem alguns bilhões para receber pelo
atendimento que faz a pacientes que têm plano de saúde. O que fazer para esse
ressarcimento acontecer?
Gil
Lúcio: É apenas uma questão de vontade política e de
cidadania. Se o Governo quisesse, já teria cobrado a conta há muito tempo. Por
outro lado, a recusa em coletar dinheiro público é ato de improbidade
administrativa. Então, o que eu e você estamos esperando, como cidadãos, para
obrigar o Governo a agir? No pacto constitucional que assinamos com o eleito,
fica estabelecido que ele irá nos cobrar impostos, mas também prestará serviços,
entres eles os de saúde. Como os serviços são de baixa qualidade, o contribuinte
tem que comprar um plano de saúde. Portanto, ele é onerado duplamente. Assim, o
correto seria as seguradoras devolverem esse dinheiro ao contribuinte que compra
o plano de saúde. No entanto, para isso é necessária uma lei federal.
Qual é o relacionamento dos planos de saúde com os
profissionais?
Gil
Lúcio: A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi
criada para administrar os interesses do usuário, dos profissionais e das
seguradoras de saúde. No entanto, ela tem arbitrado sempre favorável aos
interesses dos planos de saúde. Várias seguradoras mantêm os fisioterapeutas e
terapeutas ocupacionais trabalhando com contratos sem reajuste há 10, 15 anos.
Para solucionar essas assimetrias, precisamos aprovar uma lei federal que
obrigue a ANS a definir os honorários dos profissionais e toda a cobertura que
os planos de saúde, individuais ou corporativistas, devem oferecer. Assim,
poderemos colocar fim aos abusos.
O senhor acredita que o
Ministério da Educação tem feito um bom trabalho diante da expansão dos cursos
de fisioterapia e terapia ocupacional de baixa qualidade?
Gil Lúcio: Pulamos de
menos de 40 para mais de 500 cursos de graduação em menos de duas décadas. As
vagas que o MEC está fechando são vagas ociosas. É preciso responsabilidade e
ousadia política para fechar as vagas de baixa qualidade. Deixar um aluno
frequentar um curso de baixa qualidade é enganar o contribuinte. Ele sai com o
canudo debaixo do braço, mas provavelmente jamais achará emprego em sua área. Se
é para apresentar números ao eleitor, então é preferível levar todo mundo que
terminou o colégio para fazer uma graduação em conhecimentos gerais. Depois
dessa formação, o candidato prestaria uma prova para cursar uma graduação
profissional.